quarta-feira, 21 de março de 2012

Água Viva


Ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra. Meu corpo incógnito te diz: dinossauros, ictiossauros e plessiossauros, com sentido apenas auditivo, sem que por isso se tornem palha seca, e sim úmida. Não pinto idéias, pinto o mais inatingível "para sempre". Ou "para nunca", é o mesmo. Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura. Quero como poder pegar com a mão a palavra. A palavra é objeto? E aos instantes eu lhes tiro o sumo da fruta. Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida. O instante é semente viva.

Clarice Lispector

de ponta cabeça

E de repente ali estava eu, de ponta cabeça, com as mãos no chão fazendo uma parada. Ele segurando minhas pernas, meus pés perto de seus olhos ele abria minhas pernas para falar com as pessoas na nossa frente. O sangue descendo pela minha cabeça me faz pensar que vou explodir, e ao explodir pedaços de mim voarão por toda rua e serão pisoteados por pessoas e cavalos e massacrados por caminhões e carros, meus pedaços virarão cinzas enquanto minha cabeça vermelha de sangue pensa em como tudo pode mudar em menos de alguns segundos, as paixões repentinas que nascem virtualmente, os amores de carnaval, o sexo inesperado da noite domingo, a comida que azedou, o pneu do carro furou, os cadernos que cairam na poça d'água, choveu e molhou as roupas no varal, perdeu o emprego, vendeu o carro, não viu a mãe, não falou com o irmão, viaja daqui dois dias, falta de proteina e cálcio no organismo, tesão, tédio, masturbação, sono, preguiça, hora de almoço, hora de lamber o chão, hora de rir, horar de cagar, hora de mandar todo mundo se foder, hora de apertar delete, momento de socar a janela, de pular do prédio, de se afogar na banheira tudo isso enquanto eu de cabeça para baixo segurada pelos pés por um homem, com o sangue fervendo estou indo para cama dormir.

o meu lixo

Quarta-feira, futebol, festa sertaneja, cerveja, casa, noite. Alguém de quem nada se sabe, rindo de piadinhas no facebook e vendo fotos da mulher invejada. Alguém de quem nada se sabe, ouvindo o silêncio dos motores dos ônibus que saem do estacionamento, as freadas dos carros que tentam tirar um racha, o motor da moto que está dentro do quarto e algumas vozes...

As teclas são a melodia para essa noite desesperadora na qual se tem ou não se tem sono, alguns minutos atrás diversão e tensão com os últimos capítulos da novela das 8, e neste segundo melancolia por metro quadrado no olhar de quem não pisca e imóvel sente e não sente nada.

Alguém de quem não se sabe nada nasceu em algum ano, tem 1 metro e pouco de altura, pesa um pouco mais de 50 Kg, estuda, trabalha, anda, senta, ouve, fala, come, bebe, dorme, sabe ler e escrever, tem alergia, dor muscular e respira... alguém de quem não se sabe nada e que também nada é, sozinho em em casa em uma quarta-feira rindo de piadinhas no facebook e vendo fotos da mulher invejada.

Alguém que nada é e que nada se sabe, perdido, desesperado, esvaziado.

Alguém que nada é e que nada se sabe, que não é ouvido, não é falado, não se ouve, não se fala, que se incomoda com a situação de que não é desejado ser ouvido e ao mesmo tempo finge não se incomodar, fala.

Alguém, fala. Para quem?

Para um outro alguém de quem nada se sabe e que também nada sabe desse alguém.  Um alguém que poderia ouvir pois tem ouvidos mas não ouve.

Esse alguém que fala, sente algo que não sabe o que é, está mudo mas sabe falar, tem língua, cordas vocais, lábios, boca e dentes. Esse alguém se importa e fala coisas que podem e não podem ser importantes para você, mas é importante para alguém.



Minhas palavras são minhas ideias, minhas ideias refletem algo que não sei o que é porém é!
Minhas palavras são lixo para você, enquanto minhas ideias são vida para mim.


Quando quiser, sirva-se do meu lixo pois é nele que está minha vida.